O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros

Autor
Luis Carlos dos Santos

Desenho da capa
O Pássaro Azul, de António Tapadinhas

Foto da Contracapa
Raul Costa

Composição das Capas
José Pereira

Composição Gráfica
Luis Carlos dos Santos

Edição
1ª edição (e-book)/Dez. 2008 (20 exemplares)
2ª edição (on-line)/Set. 2009

Editora
Casa de Estudos de Alhos Vedros

16.9.09

ÍNDICE

INTRODUÇÃO

1 - O PÁSSARO AZUL

2 - ANDORINHAS E PARDAIS

3 - GAIVINAS E FLAMINGOS

4 - UMA GARÇA CHEIA DE GRAÇA

5 - OS ÁGUIAS FUTEBOL CLUBE

6 - O EDUARDO E A SENHORA DOS ANJOS

7 - UM POMBAL NA VARANDA

8 - POR DENTRO (Triângulos em cima de Quadrados)

P.S.: O conto 5, Os Águias Futebol Clube, é da autoria de Sebastião Sorumenho, ao que se agradece a gentileza pela sua cedência.
…a Alhos Vedros!
E a outros seres alados.

INTRODUÇÃO

Na sua eterna liberdade, o Pássaro Azul, ser que dá título ao primeiro conto deste livrinho, voando, veio até Alhos Vedros. Decerto por sentir alguma familiaridade com o lugar. A mim que me foi dada a honra e o prazer de ser seu anfitrião na sua passagem pela terra, disso deverei dar testemunho.

Alhos Vedros é terra de pássaros, também de pombos, e eu não podendo fugir ao sítio em que nasci e cresci, por razões que não vêm agora ao caso, sempre tive fortes ligações a uns e a outros.

Por etimologia, em parte por mim inventada, Alhos Vedros significa Homens Velhos com Asas. Uns dizem que a etimologia, polémica, da palavra remonta ao latim, outros que nem tanto, mas para mim encontro-lhe razão nessa singela definição. É verdade que não sou por ela o único responsável, mas livro à frente perceberão porquê.

Como, de vez em quando, vou gastando o meu tempo desta vida rascunhando algumas palavras, de repente percebi que tinha nas mãos um pequeno livro sobre os ditos pássaros. Todos reais, embora uns mais facilmente perceptíveis do que os outros. Nada foi fruto de arquitectada imaginação, bem pelo contrário, o livrinho é todo ele bem real.

Um livro sobre pássaros, dizia, esses misteriosos entes, mais que não seja pela facilidade com que desafiam a gravidade, em relações que atravessam muitas vezes a existência humana, num mundo mágico, desconhecido, incompreensível, bem diferente daquele que nos é dado pelo dia a dia da vida moderna, urbana, ocidental, globalizada.

No fundo, creio, que este Espírito dos Pássaros trata, sobretudo, de uma lição sobre a conquista da Liberdade, aspecto da vida que tanta importância tem para nós, onde os pássaros se constituem como uma boa fonte de inspiração. Espero que a contribuição seja efectiva e que possamos ser bem sucedidos.


Pedras D’El Rei, Tavira.

15.9.09


1 - O PÁSSARO AZUL

1º Capítulo – O Poeta, o Pintor e o Pássaro Azul

1.
Devia estar pelos quinze anos.
Naquele dia o campeão distrital de xadrez faria uma simultânea na Vélhinha, a colectividade onde se reunia com os seus amigos e onde também se jogava o xadrez.
O campeão era uma pessoa da terra, já tinha ouvido falar nele. E ele lá apareceu. À hora marcada as mesas estavam arrumadas, os tabuleiros estavam dispostos e os meninos estavam sentados prontos a iniciar o jogo. Eram por aí uns quinze os que se dispuseram a enfrentar o campeão e ele ganhou. A única vitória. Houve também um empate. Ficou sempre na dúvida se a sua vitória tinha sido permitida pelo campeão, ou se o mérito tinha sido inteiramente seu. Como era possível ter ganho ao campeão?
Agora pouco interessava, passados um quarteirão de anos já não era muito importante, mas a recordação lá estava desse tempo de menino.

O campeão de xadrez, uns anos mais tarde virou campeão de bilhar. Tinha ouvido um seu amigo comentar. De tal forma era dedicado e habilidoso que não o fazia por menos, e a dedicação trazia-lhe alguns triunfos de volta. Mas não era só a dedicação. Trazia com ele mais qualquer coisa, um não sei quê de diferente. Era calmo, muito calmo, e era também muito delicado. As palavras saiam-lhe sem pressa, certas, sem agressividade. Havia de o encontrar num salão de snooker, duas ou três vezes, onde de vez em quando ia com um amigo que também era muito bom jogador.

Fumava muito o campeão. Chegava aos três maços por dia. E provavelmente pelo elevado consumo de tabaco, talvez por alguma tensão que sempre está associada ao jogo, o coração não aguentou. Acidente cardiovascular foi o diagnóstico.



2.
O médico proibiu-o de fumar e, consequentemente, de jogar. Ele obedeceu. Mas como contrapartida decidiu nunca mais ir ao médico. Os últimos exames, até que tinham revelado algumas melhoras, mas sem uma razão que se apresentasse lógica achou que a doença só deveria depender de si.

Encontraram-se por destino uns anos mais tarde numa galeria de pintura. O campeão tinha virado pintor, porque a isso o tinha levado a necessidade de uma vida calma. Sempre tivera, de resto, uma vida profissional ligada ao desenho e, portanto, não se tratava de uma actividade que constituísse novidade. O outro, meio poeta, tinha ido ver a exposição. Cumprimentaram-se, trocaram umas palavras, fizeram uma visita guiada às suas pinturas e despediram-se. Tinham passado mais de um quarteirão de anos desde a simultânea de xadrez.



3.
Num dia marcado por alguma monotonia, o poeta decidiu dar-lhe algum movimento e, deambulando monotonamente, com alguma fragilidade até no seu jeito de se dar, rumou até uma Feira de Artes e Ofícios que fazia decorrer o seu último dia. Meteu um livrinho na algibeira com escritos seus e decidiu-se oferecê-lo a quem encontrasse. Sempre por alturas de fim de ano, compilava uns textos escritos por si e imprimia uma dezena, duas dezenas, de livrinhos que oferecia aos amigos.

Foi o renascido pintor que encontrou. Ofereceu-lhe o livro, viu e comentou as pinturas, e conversaram sobre o fracasso do miocárdio e das mazelas que ficaram. Porque já não era mais o mesmo. Metabolismos que foram destruídos.
Nunca se sabe, disse o poeta, há razões que o próprio coração desconhece. Por vezes há males que vêm por bem. E a justificar a afirmação contou-lhe uma história que tinha ouvido a uma discípula de Gustav Yung, na TV. Contava ela que, por detrás de uma perna partida, num momento aparente do mais puro dos azares, se revelaram acontecimentos benfazejos que do trágico acontecimento dependiam. Uma forma de dizer que a vida lá tem as suas razões para o melhor e para o pior, ou que, de resto, nem merece a pena pensar-se de outra maneira, porque depois do mal acontecer não há nada a lamentar.

O pintor agradeceu as ofertas com um terno sorriso nos olhos e despediram-se.



4.
O Luís Guerreiro, um amigo meu, que faz da azulejaria artística a sua profissão, decidiu-se por abrir uma galeria de artes. Chamou-lhe Arquivos Guerreiro. Para inaugurar a Galeria convidou dois amigos artistas, brasileiros, amigos da sua brasileira esposa. E foi entre cachaça, castanhas de caju, amêndoas e vinho tinto, que o pintor e o poeta se haviam de encontrar de novo.
A festa tinha um poeta popular de 77 anos, o senhor Patinha, que ia debitando de cor alguns poemas que tinha escritos e gravados na memória.
Foi então que o pintor contou da sua última exposição. Tinha sido no Pinhal Novo. Uma senhora apareceu com um violino e pôs-se a musicar cada uma das pinturas expostas. Um momento que não podia esquecer. E vai daí, porque de misturar diferentes linguagens artísticas tratava a conversa, o pintor pediu ao poeta que lhe enviasse um poema por fax para misturar a pintura e a poesia.

E despediram-se.



5.
Ficou com a ideia na cabeça. Durante alguns dias magicou com ela, e ao quinto dia o poema saiu. Tratava-se de um pássaro. Um pássaro azul. Um pássaro que pairando tinha sido captado pelo olho do pintor, dele tinha passado para a tela e da tela tinha saído, correndo através da manhã. Pois bem, enviou-lhe o poema por fax.

Uns dias passaram e o telefone tocou. A pintura estava pronta. Marcaram encontro no café e, enquanto conversavam, expuseram o quadro mesmo na parede da frente. E o pássaro lá estava, interagindo com uma criança, ele com o bater das asas, ela com o estender da mão. Foi então que lhe contou a história do porquê de um pássaro azul:

Numa outra altura já tinha feito um poema intitulado Pássaro Azul. Não este poema, um outro. E tinha-o musicado, porque de uma canção se tratava. Essa música tinha-a tocado para um amigo, camionista de profissão que se deslocava com frequência a França. Numa dessas viagens, contou-lhe o amigo, enquanto galgava estrada atrás de estrada, veio-lhe ao pensamento a canção e, no mesmo momento, um pássaro azul, real, apareceu defronte do camião.

Pois bem, disse o pintor, este quadro poderá ser oferecido para um leilão de beneficência. Talvez para uma Misericórdia. Ás vezes pedem-me para colaborar... O poeta nem tinha que concordar, mas achou a ideia feliz. Chegou a desejar ficar com o quadro para si. Pressentia-lhe uma qualquer magia.

O poeta, que para além da poesia, outras coisas escrevia, tinha sido convidado para participar num jornal local. Ora, como o pintor também gostava de escrever, logo ali foi feito o convite para também ele participar no jornal. Ele aceitou. E foi assim que se passaram a encontrar com o director do jornal todas as quintas-feiras, dia em que se juntavam para conversar sobre a vida do jornal.





6.
Um dia, como o mundo é pequeno, um amigo do poeta foi dar com o quadro do pássaro azul num restaurante. O pintor tinha feito uma exposição mais e, no meio de outras telas, resolveu colocar também a do pássaro azul que como todas as outras tinha o seu preço. Decidiu ir almoçar a esse restaurante e, já sabia, o quadro seria seu. Comprou-o.

Mais uma quinta-feira chegou e encontraram-se no café antes de ir à reunião do jornal. O pintor contou-lhe que o quadro tinha sido vendido, mas o poeta num súbito impulso resolveu, naquele momento, não lhe dizer que tinha sido ele o autor da compra. E foram para a reunião.

Finda a reunião saíram do jornal. Eram onze horas de uma noite calma. Caminharam pela rua e traziam um sorriso nos lábios. O pintor bateu com a mão no ombro do poeta, em sinal de demonstração dessa contida alegria interior. E nesse mesmo momento, um pássaro saído de dentro da noite, caído do céu, pousou à frente dos dois. O pintor jogou-lhe a mão e apanhou-o. Estava assustado coitado. Levou-o para casa. Não sem que antes levasse uma bicada que lhe deixou o dedo a sangrar.

Sei que lhe comprou uma gaiola e que lhe deu de comer. Era uma caturra. Eu perguntei-lhe qual era a sua cor e ele respondeu-me que tinha várias tonalidades, mas que se tivesse de dizer uma cor, então, era azul.

Um dia destes hei-de ir lá visitá-lo.


2º Capítulo – A Rúpi, um Pássaro Azul



1.
O poeta vinha subindo a avenida que o levava a casa. Calmamente, guardando o mundo em si, caminhava e talvez assobiasse. De repente, um pássaro passou rente à sua cabeça e poisou a três metros de si, no parapeito da montra de uma loja que vendia roupas. Lá vinha, outra vez, o pássaro azul. Era, de novo, uma caturra.

Ficou parado a olhar o pássaro que, por sua vez, olhava para si. Nalguma excitação de ideias foi pensando que se aproximasse, com certeza, ele fugiria. Por outro lado, se não fugisse e se deixasse agarrar, teria de tomar conta dele e assumir tudo o que isso significasse – água, comida, roupa lavada.... Enquanto indeciso pensava, um velhote se aproximou e percebendo a sua inquietação, incitou-o, num gesto determinado, a tentar apanhá-lo. Era o Ti Chico, o Mais Velho de Alhos Vedros.

Jogou a mão, devagar, e na verdade até pareceu que o animal estava à espera de alguém que o agarrasse (“deve ter fugido de alguma gaiola e estar desorientado”, pensou). Mas não sem antes lhe ter pregado uma valente mordidela, deixando-lhe um dedo a sangrar. Corajosamente resistiu à dor e enfiou o pássaro numa mala de livros que, por acaso, trazia.

Levou-o até casa, meteu-o numa gaiola que para lá tinha abandonada e foi comprar acessórios para a gaiola, mais comida, não fosse o pássaro estar com fome. Depois de tratar do animal reparou que, afinal, aquela gaiola era demasiado pequena para uma caturra. Mas teve sorte. Um familiar tinha uma gaiola apropriada, vazia, guardada no sótão, e aprontou-se a emprestá-la. Novos acessórios teve de comprar para que o bicho ficasse razoavelmente instalado, mas pronto, parece que agora era só alimentá-lo e assumir sem mágoa o que lhe tinha reservado o destino.

Estava muito enganado.



2.
As caturras são pássaros afáveis, pouco esquivos, convivendo bem com a proximidade do homem. Pelo menos a julgar por algumas informações que foi angariando, desde que a caturra lhe “caiu na sopa”, já que o seu desconhecimento sobre estes pássaros era absoluto. Só não gostam muito das mãos e dos dedos, pois que as leva a abrir agressivamente o bico, em sinal de pronta defesa. Com certeza, com medo de serem agarradas, o que não lhes agrada nada.

O tempo foi passando e o poeta foi reparando que o facto de ter um bicho preso numa gaiola era para si um incómodo. Uma gaiola assemelhava-se demais com uma prisão e começou a ter pena do bicho. Triste sina ver o mundo aos quadradinhos e com asas, mas sem poder voar.

Pensou, então, em dar-lhe liberdade, mas dois grandes obstáculos se levantaram: Primeiro, disseram-lhe que o pássaro não sobreviveria num ambiente desconhecido, já que era oriundo dos trópicos e não se conseguiria alimentar sozinho, depois de estar habituado a viver em cativeiro. Segundo, o seu filho, cinco anos, adorava o pássaro e não queria por nada deste mundo que o afastassem dele.

Posto isto, pensou como alternativa, deixá-la à solta lá em casa. Mas como poderia conviver com um pássaro daquele tamanho e de rabo comprido? A sua companheira não gostava nada da ideia e depois, com certeza, que iria espalhando comida e cagando por tudo que é sítio.

Resolveu comprar-lhe um poleiro que substituísse a gaiola. Pelo menos livraria a caturra do olhar por detrás das grades. Tinha conversado com a mulher da loja dos animais e ela, que tinha um poleiro para vender, aprontou-se a enfiar uma argola com corrente na pata do pássaro e garantiu a pés juntos que a caturra “ficaria optimamente bem instalada”. E ele acreditou.

Mas não. Ainda assim, as suas ânsias de liberdade não se satisfizeram com a sorte da caturra. O poleiro não era bem aquilo que pensara. Como se não bastasse, a argola metálica que prendia a pata do bicho, ficara um pouco apertada, deixando-o numa aflição e debicar constante, daquele estranho objecto que o mantinha preso aquela caixa de ferro.

E ela batia as asas, mas não conseguia voar.




3.
Decidiu-se pela libertação da Rúpi, o nome com que o seu filho a baptizara. Doravante, poderia voar por onde lhe apetecesse que ele assumiria a limpeza das cagadelas. Acabou por se tornar mais fácil do que inicialmente pensara. A Rúpi tinha, mais ou menos, poisos certos, geralmente os varões dos cortinados, o que lhe permitia resolver o problema, metendo umas folhas de jornal, no chão, por debaixo dos varões. E depois, era só ir comprando jornais e substituindo as folhas.

No dia seguinte ao da libertação uma surpresa o aguardava.

Sentou-se à mesa da sala, onde também estava a Rúpi poisada num dos seus varões preferidos, e preparava-se para iniciar uma qualquer leitura. De repente, um bater de asas em voo picado e tinha a caturra poisada no seu ombro. Tentou não ligar muito ao facto, até para não a assustar, pois percebera que o primeiro contacto físico com a Rúpi tinha da sua parte uma intenção amistosa e pacífica. Era um pássaro estranhamente manso.

A partir dali as visitas da Rúpi tornaram-se constantes. Estivesse a ler, estivesse a comer, ou estivesse simplesmente de passagem, lá vinha a Rúpi descansar no seu ombro. De tal forma, que se tornou excessivo. Por vezes, apetecia-lhe estar sem ter um pássaro ao ombro. Foi assim que aprendeu a atraí-la com o recipiente com que lhe dava comida. Estendia-lhe o comedor e ela poisava no seu beiral, o que lhe permitia em seguida encaixá-lo no poleiro e, pelo menos enquanto ela comia, dava-lhe descanso.

Mas a Rúpi não se amestrava, assim, sem mais nem menos. No espaço de tempo que ia desde que lhe estendia o comedor, até o colocar no poleiro, a Rúpi bicava-lhe um dos dedos com que o segurava. E as caturras têm um bico forte e afiado que lhes dá facilmente, por exemplo, para partir a casca das sementes de girassol, com que se alimentam, e que dava para, quando bicava com mais força, lhe deixar o dedo a sangrar. Decididamente, a Rúpi não gostava de dedos. Ocorreu-lhe, então, que tinha de comprar uma dedeira, daquelas que usam as peixeiras para se protegerem das espinhas do peixe. “Compram-se nas farmácias”, disse-lhe a sua companheira.



4.
Na altura andava a ler um livro, cuja segunda parte se chamava “A Linguagem dos Pássaros”, de José Manuel Anes, que mais fazia lembrar as coisas dos egípcios e as cabeças de pássaro que alguns deles traziam na cabeça. Tinha também acabado de publicar um livro de poemas, numa editora inventada para o efeito, a que chamou de Casa de Estudos de Alhos Vedros (CEAV) e que se lê SÊ AVE. Aliás, o próprio nome de Alhos Vedros poderá resumir-se em AVES. Mas também, como era crença sua, em “Homens Velhos com Asas”, definição a que chegou depois do Professor Agostinho da Silva lhe ter dito que Alhos Vedros também significava Homens Velhos, sem que lhe referisse o porquê, nem qual a fonte.

E foi assim que a Rúpi, um pássaro de cabeça amarela, com duas bolas redondas e vermelhas nas faces como se estivesse sempre envergonhada, o corpo de um cinzento azulado, o extremo das asas branco e com um rabo muito comprido, entrou na vida do poeta. Ela, mais a comida, as limpezas, o poleiro, os jornais, a dedeira, a sua agradável presença, o pensamento de quem lhe dará comida quando tiver que se ausentar por uns dias e a sensação de uma certa liberdade por não a ter presa por uma pata, nem dentro de uma gaiola.


3º Capítulo – Voando através dos tempos



1.
A Rúpi esvoaçou livremente pela casa durante vários meses. No início foi limitando o seu espaço à cozinha e à sala que eram comuns, mas depressa se atreveu pelas outras divisões, sobretudo, pelo escritório, uma sala que ficava no extremo oposto da casa que para lhe aceder se tinha de atravessar um longo corredor. E então lá andava a Rúpi em voos rasantes, de um lado para o outro da casa, conforme as suas conveniências que, na maioria dos casos, era estar perto dele. A Rúpi perseguia-o pela casa e o seu ombro era o poiso preferido.

Deveria ser realmente poético, e até reconfortante em muitas ocasiões, dividir a casa com um Pássaro Azul de razoáveis dimensões que o tinha eleito como o seu melhor e inequívoco amigo. A companhia, os voos rasantes, o bater das asas, o peneirar, os mimos que lhe dedicava, iam justificando os contratempos que o bicho causava. Mas o passar do tempo haveria de lhe mostrar a razão, porque mais ninguém tinha em casa como animal de estimação um pássaro daquele tamanho à solta. Inicialmente até que conseguiu alterar-lhe alguns dos maus hábitos, como não deixá-lo estar presente durante as refeições, porque por sua vontade andava por dentro dos pratos, debicando por tudo que havia; ou não a deixar pousar no ombro quando não estava para aí virado. Mas a amestração da Rúpi revelava-se uma tarefa delicada que exigia tempo, paciência e persistência, o que sem dúvida eram obrigações a mais para a liberdade de ter um pássaro à solta. E depois, percebeu que nunca conseguiria ensinar-lhe o caminho da casa de banho, o que constituía mais uma das grandes complicações.

Então qual a alternativa que se impunha? Voltar a enfiá-la numa gaiola estava fora de questão. Podia simplesmente abrir-lhe a janela e empurrá-la para a rua, mas tinha-se convencido que ela sozinha não sobreviveria. Acabou por se decidir por um viveiro de pássaros que os alunos de uma Escola próxima tinham construído. O viveiro tinha umas dimensões razoáveis, e embora não fosse o mesmo que viver em plena liberdade, pensou que aquela constituía a solução ideal para o Pássaro Azul.

Dirigiu-se à Escola, falou com quem devia falar, e passados dois dias tinha dado um novo lar à Rúpi. Doravante passaria a viver na Escola José Afonso.



2.
Uns dias depois foi visitá-la. A pessoa que tratava dos pássaros era um velho conhecido seu, o Zé Manel, e não lhe era difícil visitar a Rúpi quando disso tivesse vontade. Aproximou-se do viveiro, e andando o Zé Manel por perto, perguntou-lhe como se estava ela a adaptar à nova casa. Ele foi dizendo que estava tudo bem, que comia, que bebia, não guerreava com os canários e periquitos que já lá estavam, por isso estava tudo bem, e acompanhou as palavras com um encolher de ombros... enfim, para ele era trabalho. Enquanto ia conversando com o Zé Manel, à medida que se abeirava do viveiro, pôs-se a chamar pelo seu nome e a emitir uns sons que habitualmente fazia quando se lhe dirigia, e ela respondeu-lhe, com um cantar eufórico, mas em queixume, como se procurasse compreender melhor o porquê do que lhe tinha acontecido.

O Zé Manel, homem de poucas palavras e parco em entusiasmos, mas de sensibilidade apurada, depressa reparou na choradeira da caturra e interiorizou os sentimentos do bicho. Tanto que lhe arrancou algumas das poucas palavras que pronunciou durante a minha visita: “Quando tu a deixaste cá, depois de ires embora, ela ficou o tempo todo agarrado à rede, a olhar para ti, até que lhe desaparecesses da vista”.

E é claro que isso lhe apertava o coração.



3.
Num outro dia, numa outra visita, reparou que a Rúpi estava demasiado só. Precisava de um companheiro da sua raça. E foi isso mesmo que acabou por propor ao Zé Manel. Iria à loja de animais lá do sítio que, já tinha reparado, também vendia caturras e compraria uma, de forma a acabar com a solidão da sua amiga. “Achas isso possível Zé Manel? Será que não haverá problemas com os gestores do estabelecimento?” Como o Zé Manel acedesse e para minimizar possíveis problemas, propôs-se a comprar também ração quanto bastasse. Depois de combinar a hora ideal resolveu que no dia seguinte iria à loja buscar o companheiro da Rúpi.

No dia seguinte, e para grande surpresa sua, o seu filho que não sabia da decisão que tinha tomado de comprar uma outra caturra, chegou a casa em tom de grande euforia a dizer que a Rúpi já tinha um amigo. Tinha acabado de passar pela escola para visitar a Rúpi e tinha deparado com duas em vez de uma só. Com certeza que tinham decidido na escola comprar um companheiro para a Rúpi a custos próprios, pensou. Estranhou, no entanto, o facto de ninguém ter dito nada, porque não fora o seu filho e poderiam em vez de duas, ter passado a três caturras. Mas pronto esqueceu o compromisso.

Um dia depois, à noite, foi encontrar o Zé Manel num bar que ocasionalmente frequentava e dispôs-se a esclarecer a situação. Afinal, ninguém comprara mais nenhuma caturra. Disse o Zé Manel que naquela manhã, enquanto ia regando as árvores, de repente, apareceu uma caturra. Perseguiu-a, mandou dois ou três mergulhos para o chão a tentar apanhá-la, qual miúdo de boné revirado, mas que depois lá conseguiu pegá-la numa árvore baixa em que ela tinha pousado. Ao apanhá-la, e para não escapar à regra, levou uma valente mordidela que lhe deixou o dedo a sangrar. Agarrou-a pelo pescoço e foi assim que a levou para dentro do viveiro.

E foi assim que a Rúpi passou a ter um companheiro com o qual se acasalou rapidamente, com certeza para recuperar de desgostos amorosos recentes. E foi também assim que, na vida do poeta, o Pássaro Azul continuava a fazer história, de tal maneira, que num curto período de tempo lhe ia trazendo caturras atrás umas das outras. O que seria?

Relembrando, e regressando ao início da estória, o Pássaro Azul começou por lhe aparecer como título de uma poesia que depressa ganhou música e se transformou em canção. Uma canção que fala da largada do si em direcção ao Todo, ao absoluto, ao amor.

Depois de cantada a canção, o Pássaro Azul encarnou e tornou-se real, de penas, carne e osso, quando apareceu diante do seu amigo camionista, a justificar a importância da amizade, revelando-se ele próprio como amizade, mas que ainda assim, haveria de derivar em desencontro.

Foi, então, que de novo se tornou poema, desta vez para se transformar em pintura, uma aguarela amarela (e azul), bem definida na tela, exposta e comprada pelo poeta, regressando assim ao seu lugar de origem, ou seja, a sua casa, onde a estória se iniciou e onde pela primeira vez se deu conta da existência de tal Pássaro.

Vasculhou nas prateleiras da memória e reparou, desconfiadamente, na sua ligação de sempre aos pássaros. Na forma como os capturou, e como os capturaram os entes passados, como lhes aprendeu o canto, como sentiu culpa e remorsos por privá-los de liberdade, até se sentir perdoado. Ou então, nalgumas pinturas oferecidas por amigos próximos, uma que falava da “Conferência dos Pássaros”, outra numa personificação de um pássaro, um homem com enormes asas e cabeça de pássaro. Mais uma vez a Criação, mais uma vez a Amizade. Ou ainda, pela Casa de Estudos de Alhos Vedros (Sê Ave); ou ainda pela etimologia imaginada de Alhos Vedros se definir por Homens Velhos com Asas. Tudo isto foi buscar aos arquivos da memória, sem que antes tivesse dado pela significância de todos estes acontecimentos, se é que haja razão para lhe dar significado. Foi tudo isso que o levou à compra de um livrinho ilustrado, com texto do Gabriel Garcia Marquez, chamado Um Homem Muito Velho Com Umas Asas Enormes, quando este em certa ocasião se lhe deparou.

Mas o Pássaro Azul não se ficara por ali, ao regresso à casa do poeta, mas novamente se transformou, e de dentro da tela voou para uma aparição, através de uma noite cerrada, ao encontro do poeta e do pintor, que um dia fora campeão de xadrez. Ainda uma e outra vez reencarnou.

Por fim, foi encontrar o Pássaro Azul transformado em título de uma revista que em tempos fora editada, em França, pelo Professor Roger Cousinet. Uma revista com textos exclusivamente escritos por crianças, os seus alunos, onde se tenta misturar a escola com a liberdade, pois que é a partir da sua própria vontade e dos seus próprios textos que as crianças vão aprendendo a ser, longe dos métodos de uma escola tradicional e castrante que nos vai mantendo agrilhoados a uma mentalidade caduca, mas que ainda vai teimando em resistir.

Quer dizer, o poeta, foi encontrar o Pássaro Azul lá longe, em letras do início do século, a revelar-lhe que, afinal, foi voando através dos anos que ele chegou à sua casa. Um Pássaro que ora se diz, ora se vê, outras vezes pinta-se e escreve-se, e que tantas vezes encarna e reencarna. Um Pássaro Azul que é amizade e liberdade, sintetizadas ambas em amor, produto afinal de uma mesma energia criadora que nos assiste.

Somos nós, enfim, esse Pássaro Azul.
foto de autor desconhecido

2 - ANDORINHAS E PARDAIS

Todos os anos, pela Primavera, as andorinhas regressam em abandono de lugares mais frios. Não se dão muito bem com o frio.

Nos beirais dos telhados, nas casas velhas, nas varandas, juntando pedacinhos de argila numa técnica muito apurada, constroem os seus lares. Neles dormem, chocam os ovos e alimentam os filhos.

Quando chega o Outono, com o arrefecimento da temperatura do ar, deixam as suas casas intactas, na esperança de que no próximo ano ainda as possam ocupar, e rumam a outros lugares em busca da desejada qualidade de vida.

Assim tem sido nas varandas da minha casa, desde que ela foi construída, já lá vão uma dúzia de anos. Há quem pendure papéis, sacos de plástico, ou faça desenhos, para as afugentar de fazer o ninho, e há até quem destrua os ninhos com filhotes pequenos lá dentro, mas eu não. É verdade que elas ainda não aprenderam a ir ao WC e como diz um amigo meu, “elas são muito giras, mas cagam-te a varanda toda”, mas eu gosto muito deste convívio e prefiro dar-me ao trabalho de limpar a varanda, do que mandar as andorinhas embora.

Quando chega a altura das andorinhas migrarem a outras paragens, deixam, então, os ninhos vazios. Ora os pardais, como a sua arquitectura não é tão sofisticada e, com certeza, por serem um pássaro esperto, não gostam muito de trabalhar, preferindo ocupar o tempo noutras actividades mais do seu interesse, ao verificarem o desperdício de tão bons lares desocupados, metem as mobílias usadas na rua e vai de ocupá-las com mobiliário moderno. Ali passam a dormir, chocam os ovos e alimentam os filhos.

O problema surge quando, de novo, as andorinhas regressam. Sempre as andorinhas se dirigem para a sua velha casa que habitaram no ano anterior. Mas como ainda não há as Conservatórias de Registo Predial para as aves, e como elas não têm intermediários a quem reclamar, têm de tratar do assunto directamente com os pardais. E digo-vos é um espectáculo impressionante, metendo guerras prolongadas, violentas, com despejos mútuos do interior dos ninhos que chega à morte dos filhos.

Na guerra a que eu assisti, à volta da propriedade de um ninho, as andorinhas acabaram por derrotar os pardais, mas estes por vingança, e já que os tumultos se arrastaram durante alguns tempos, acabaram por matar as primeiras crias desse casal de andorinhas, numa cena arrepiante. Foi assim:

O pardal macho, numa altura em que os progenitores das pequenas andorinhas se ausentaram em busca de comida para os filhos, veio até perto do ninho, encheu os peitos, duplicou de tamanho, eriçou as penas, foi lá dentro, e depois de bicar as jovens andorinhas na cabeça, mandou-as para fora do ninho, para o chão, onde acabariam por perder a vida. Foi um espectáculo que, naquele momento, me deixou bastante perturbado.

Este ano as coisas mudaram, não sei se para sempre. Da mesma forma, na mesma altura do ano, as andorinhas foram embora e os pardais lhes tomaram as casas. Da mesma forma e na mesma altura, as andorinhas regressaram e deram com a casa ocupada pelos pardais. Mas este ano em vez de protestarem, as andorinhas construíram uma casa nova ao lado dessa outra e decidiram coexistir, pacificamente, sem refilar. Este ano, andorinhas e pardais decidiram assinar um Tratado de Paz.

Não conheço as cláusulas de tal Tratado e, portanto, não sei se os pardais terão de prestar alguns serviços às andorinhas como paga dos planos de projecto e trabalhos de construção da casa, mas tudo leva a crer que não. Uma pergunta, no entanto, fica no ar: Será que as andorinhas acharam que os pardais tinham razão? Ou será que as andorinhas, simplesmente, decidiram perdoar?
foto de autor desconhecido

3 - GAIVINAS E FLAMINGOS

1.
Tenho um amigo que adora animais. Cavalos, cães, grandes e pequenos, gatos, aves de vários portes, e por aí fora. Um dia apanhou um pássaro do rio ferido. Um desses pássaros que passam connosco parte do ano, em viagens eternas de vai-vem e que, com certeza, foi apanhada por uma chumbada de caçador.

Era uma gaivina, ou perna-longa, como também se chama: a parte superior das asas preta, todo o dorso branco, pernilonga, de bico estreito e comprido para melhor pescar na lama.

O meu amigo levou-a para casa, tratou-a, deu-lhe de comer, e quando viu que ela estava completamente restabelecida, achou que era chegada a hora de a devolver ao seu habitat natural. E convidou-me para tal empresa.

Foi um grande dia, esse, o da libertação da gaivina. Tudo se passou nas marinhas defronte do cais de Desmantelamento de Barcos, em Alhos Vedros. Como eu trago bem gravado, desde então, o ar de agradecimento que a gaivina nos enviou, antes de virar numa esquina de salgadeira e voar para iniciar um renovado ciclo de vida.

Quanto ao dito Cais, também chamado “Cais Novo”, o cemitério de barcos que temos em Alhos Vedros, assinala uma forte presença, ali mesmo junto ao rio, destoando de toda a área natural, ribeirinha, que o cerca. Uma zona de grande beleza natural e de lazer para todos nós que outrora ali íamos passear, pescar, nadar, ver os flamingos, as gaivinas, enfim, aproveitar algumas das boas oportunidades que a natureza nos proporciona. Disse bem, outrora...

Ainda tem o nosso Concelho, refira-se em bom tom, aqui mesmo em frente a Lisboa, um daqueles lugares naturais que constituem um bem escasso cada vez mais raro nos tempos que correm. Portanto, o mais óbvio, será irmos pensando, e depressa, na melhor maneira de proteger toda esta zona ribeirinha, devolvendo-a inteiramente às populações, evitando a tempo alguns oportunismos menos convenientes que não destruam a beira-rio, tantos são os maus exemplos que conhecemos.

Mas se em Alhos Vedros a relação entre gentes e rio tem estado meio complicada, agora, meus amigos, acabaram de chegar os Melos, e num projecto urbanístico, rodeado de muitos cuidados e algum mistério, iremos ter mais onze mil pessoas ali mesmo ao pé do rio. Será que vão haver gaivinas que resistam?




2.
Já me tinham dito que os tinham visto por cá. Para mim foi a primeira vez. Numa das minhas habituais passeatas ao Moinho da Encharroqueira, no meio de alguns exercícios físicos, eis que de repente, como se de uma visão se tratasse, eles lá estavam.

Bem perto de mim, a uma distância de cinquenta metros, nas suas fogueantes cores, brilhantes, entre os brancos e os rosas, um bando de doze, calmamente ia estando, sem que revelassem medo da presença humana. De muita calma se tratava, de facto, porque devia estar fora da hora da refeição. Até parece que em repouso meditavam. Pareciam anjos.

Voltei de volta sem acabar os habituais exercícios: saudação ao sol, seguida de simples exercícios físicos, fechando com alguma meditação/contemplação ou oração, ou não. Acabei por escolher um sítio mais tranquilo, junto a umas árvores à beira do caminho. E aí comecei.

À minha frente o sol brilhou, atrás pintou o arco‑íris, nítido e radiante, e ao redor choveu. Chovia e fazia sol, em simultâneo, dando uma cor inesquecível de luz, de difícil descrição, mas decerto tornando imenso o espectáculo. Como é incrível a sinfonia da natureza. Com algum jeitinho até dava para ouvir a “Música das Esferas”, os “Cânticos Celestiais”.

E a chuva começou a cair com tal intensidade que não dava só para andar e reiniciei a corrida. E eu corria pelo meio da chuva numa sensação de infinita beleza e felicidade. Havia um pequeno receio pelo meio, cair chuva‑de‑pedra. Porque três vezes ela acelerou em queda veloz.

Ao chegar perto de casa, ainda pelo meio da chuva, estava um idoso amigo resguardado debaixo de uma varanda e que logo me aconselhou a não parar para não arrefecer. “Não pares, isto é gelo. Agora vais tomar já um banho e ficas bom”. E eu, embora a minha vontade fosse prolongar aquele banho de chuva, confiei na sua experiência.

Ao dobrar a esquina do prédio, a São e o Tomás preparavam‑se para sair. Ao ver‑me encharcado que nem um pinto, o Tomás olhava para mim de cima dos seus três anos, olhos esbugalhados de incrédulo, porque decerto nunca tinha deparado com tal cenário. “Será que este é o meu pai?”, deve ter pensado. Mas assim que reparou que eu estava satisfeito e que nada havia de mal, logo disse: – “Pai, quero ir ver o mar...”

E eu lá fui escada acima ao encontro de um tão merecido banho de água quente.

4 - UMA GARÇA CHEIA DE GRAÇA

Calmas, brancas, pescoço alongado
bico comprido afiado.
Sessenta centímetros de tamanho
pernas pretas e patas amarelas
comem da terra junto das ovelhas, ou dos bois.
Patas compridas
sempre por perto ou dentro de água,
da salgada ou da salobra.


Tem uns arbustos onde fazem ninho
e como casa a Terra inteira
caminham devagarinho
num passo indeciso
e olhar absolutamente inofensivo.


Lembro-me que um dia fui passear
até por perto do mar
num lugar em que ele se junta com o rio.
Um passeio habitual,
da minha casa até ao rio
há toda uma parte ainda natural.
É onde eu falo com os pássaros
e canto com as árvores
e convivo com o meu amigo vento,
braços abertos para o sol
deixo fluir o pensamento,
e é dali que eu vejo tudo.


No caminho tem umas árvores
que em parte do ano estão despidas
são aí um conjunto de seis, porte elevado
umas às outras encostadas, sentadas,
alinhadas seguem um pequeno curso de água.


Naquele dia
em que o dia ainda pequeno, crescia
e em que o sol já forte despontava
e em que eu caminhava na direcção do rio,
nos ramos daquelas árvores nuas
olhando para o sol a subir
estava um bando de garças a curtir,
o seu calor.


Uma poderosa presença
pela maneira como viradas para Ele olhavam
pela maneira como o adoravam,
até que dei comigo a pensar
que não eram garças, afinal
eram anjos a descansar.
foto de Raul Costa

5 - OS ÁGUIAS FUTEBOL CLUBE

Alvalade de Sado, 12 de Fevereiro de 1996,
Por Sebastião Sorumenho


A equipa, essa, formou-se pelo correr do tempo. Era um bando de miúdos que soía pousar numa das praças da vila, onde, entre outros jogos, com ou sem apetrechos mais que os corpos, era o futebol o que mais empolgava a pardalada que a ele se entregava de alma e coração, sem memória de necessidade de marcar encontro.

Aquilo funcionava mais ou menos assim. Com uma bola disponível num café vizinho, cujos proprietários tinham um filho que pertencia à trupe, os primeiros a chegarem ao pelado tratavam de agarrar no brinquedo para, de imediato, se entregarem aos chutos e às fintas.

Era sol fugidio. Magicamente atraídos pelo cheiro da comida lá aterravam outros que se iam incorporando na jogatina, assim fazendo inchar as turmas até que um número razoável suscitasse a escolha das partes e, tudo feito segundo as regras, propiciasse o início do desafio do dia.

Não vou dizer que fosse o futebol o principal motivo daquele hábito de ali desaguarem tantos petizes. Na verdade, a maioria eram gaiatos de rua, isto é, sem qualquer sentido pejorativo, ganilha que por falta de condições domésticas eram forçados a passarem os seus tempos lúdicos fora de portas e, não só pela lei do menor esforço, não se decidiam a ir mais longe pelo que daquele largo faziam o seu ponto de encontro.

É certo que ao lado havia o jardim público da vila. Mas aí mandava o tio Epifânio, o encarregado da Junta de Freguesia pelo bom estado dos canteiros de flores e ele, o velho Bifanas, como os acessos de raiva faziam, entre nós, chamar-lhe, todo poderoso, jamais hesitava quanto a espingardear as correrias e, com isso, a excomungar veleidades, especialmente nocturnas, dada a iluminação, de utilizarmos os bancos como balizas para joguinhos de dois ou três sem guarda-redes.

Em todo o caso era o desporto-rei o preferido, não quero exagerar mas talvez o único a gerar unanimidades e apesar de todos os problemas a ele ligados, dos puxões de orelha, por via das queixas relativas a uma ou outra vidraça quebrada, aos esféricos apreendidos pelo poder dos mais velhos, apesar dessas vicissitudes, dizia eu, era o único jogo que nunca passava de moda e, ao contrário dos berlindes ou do peão, cada qual com épocas específicas, era aquela uma actividade desportiva que de sazonal nada tinha.

E, diga-se com justiça, até as miúdas gostavam de ver aqueles rodopios em busca do golo e quantos homens não pararam para admirarem os engenhos daqueles Eusebiozinhos.

Foi pela experimentação dos talentos e a descoberta das habilidades que as posições se foram definindo e não andarei longe da realidade se aqui escrever que, pelo menos à primeira vista, reuníamos um bom conjunto com todos os lugares preenchidos a contento.

Modo geral, todos éramos capazes de fazer fintas – como seria de esperar, uns mais desembaraçados que outros – e de passar as bolas à distância, tal como estávamos capacitados para remates de primeira ou elaborar um centro minimamente aceitável.

Tínhamos horas e horas de treino diário que de nós faziam autênticos moiros de trabalho.

Para que não mace, entre os artistas escolherei apenas alguns. Dos outros, eventualmente poderei falar a propósito de outras coisas e em outras ocasiões.

O Almeida Dias, por exemplo, um lateral direito que em alguns momentos do jogo fazia de extremo e, geralmente, conseguia umas quatro ou cinco jogadas em que aparecia a centrar para a cabeça ou a bota de alguns dos avançados ou de quem lhes vestisse a pele.

O Almeida Dias que foi precoce no abandono dos estudos e cedo entrou no mercado de trabalho, exactamente o mesmo que desde o princípio quis ser homenzinho e antes de todos deu o nó, sequer sem ter sido militar, aquele que hoje, depois de um começo como aprendiz, tem um negócio de tipografias que lhe oferece um padrão elevado.

Isto sem poder deixar de recordar o Toninho Careca, vá lá saber-se porquê a alcunha, o culpado de todas as derrotas, o guarda-redes por graça de cujas azelhices perdíamos e que na sua passividade de santo era esquecido em todos os momentos de glória.

António Manuel Azevedo Malveiro, o homem com a mão mais temível para jogar ao “palmo e cagada”, filho do dono do café, em tempos, ele próprio guardião de uma primeira equipa do Peniche, o Toninho que nada ligava à escola de que desistiu para ganhar a vida como empregado de balcão numa velha pastelaria da baixa pombalina, o keeper cujo ponto fraco eram as saídas, já que entre os postes tinha tiradas de se lhe tirar o chapéu.

Ou o Rui Madeira, o guias brancas, um mandrião com pés de ouro, verdadeiro exemplar do menino que acabou perdido em aventuras de alibabá, vulgarmente um excelente armador de jogo de cuja arte saíam muitos dos golaços que nos faziam pular de alegria.

Pois foi com esse fermento que a equipe foi evoluindo para um clube.

Assunto sério, só poderia ter sido levado a peito e elegemos presidente e tudo, o Zé Augusto, o mais velho de todos e reconhecidamente considerado um indivíduo inteligente e responsável que depois da escola industrial entrou como operário da Quimigal onde hoje ainda ganha o pão de cada dia.

Foi de tal ordem o afã que chegámos a emitir quotas que o João Manuel, o médio centro que também fazia de segundo homem da frente, mantinha em perfeita ordem e actualizadas.

Mas havia mais, muito mais.

O Luis Carlos, filho de comerciante em permanente abastança, possuía um sótão só para ele e as suas fantasias e, como é bom de ver, facilmente a camaradagem fez daquele espaço a sede do clube, onde, para além de alugarmos jogos uns aos outros o que só os mais afortunados pagavam, podíamos ostentar, numa prateleira, algumas taças pelo Toninho subtraídas às memórias paternas e que serviam para intimidar as visitas.

Posso mesmo evidenciar a realização de um torneio entre quatro times da freguesia que, sem o sabermos, acabaria por determinar a extinção do nosso, em função da selecção que o nosso segundo lugar provocou com a saída dos melhores de nós para os campeões.

Não foi isso que apagou aquela bianuidade de grande satisfação e orgulho com aquele a que todos os fundadores, em espontânea unanimidade, decidiram baptizar por Águias Futebol Clube.
pintura de autor desconhecido

6 - O EDUARDO E A SENHORA DOS ANJOS

Estão a decorrer as tradicionais festas de Alhos Vedros, em honra de Nossa Senhora dos Anjos.

No que me diz respeito, pouco ou nada tenho participado. Mais pelo meu filhote, que gosta de ver as luzes, pela música que se ouve nas ruas e pelo barulho das pistas de carros, lá me vou lembrando que estamos em festa.

É uma festa fraquinha: o programa dos espectáculos não tem nomes razoáveis, os carrosséis e feirantes são em número reduzido e a população não se envolve lá muito com a sua festa. E a acentuar a ideia podemos ver os feirantes, dois dias ainda antes dela acabar, a desmancharem as pistas e a irem embora. Com certeza vão à procura de um lugar mais rentável. Ouvi dizer que vão para Beja, festa que começa no dia de São Lourenço (Santo que também dá nome à freguesia de Alhos Vedros), a crer nas palavras do Neves, dono do café São Lourenço, que é de Beja. É caso para dizer que são pistas que andam na peugada de São Lourenço.

Dizia eu, que levaram todas as pistas de carros e carrinhos, ainda antes da festa acabar, excepção feita a uma pista infantil que estoicamente se aguentou. Hoje de manhã, quando vinha das compras com o Tomás, ele sentado no seu carrinho e eu empurrando, ainda a alguma distância, vislumbro a dita pista, fechada, só e triste, no abandonado recinto da festa. Dentro da pista um menino, sentado, calmamente aguardava.

Eu cheguei com o Tomás, três anos de idade, que mal a viu tão cheia de bicharada, motas, bicicletas e carros, ficou qual abelha de volta do mel. Subia ao cavalo, descia do elefante e ainda subia à bicicleta, já punha o olho no carrinho.

E o rapazinho lá estava. Devia ter uns dez anos de vida.

Disse-me que trabalhava na pista. Ajudava a limpar e ajudava os mais pequenos a não cair quando ela começava a rodar. E que afinal, contrariamente ao que se esperava, a noite anterior tinha tido bichas de meninos a comprarem fichas para andarem na pista. E disse-me que não ganhava nada, simplesmente ajudava.

Aquele menino ali sentado no seu carrossel mágico, esperava pelas seis ou seis e meia da tarde, para começar a ajudar a desmontá-lo. Calmamente esperava e tinha muito que esperar, já que eram onze horas da manhã. Mas parecia não ter pressa, nem estar preocupado com o facto. Amava a pista e sentado dentro dela, aguardava a hora em que ela precisasse da sua ajuda.

E disse-me que o dono da pista já tinha pensado em ir embora, mas depois coitadas das crianças que ficavam sem pista. “Não, não se deveriam ir embora sem que a festa acabasse”. E os seus olhos eram de sonho, e os seus gestos eram de ternura e de amor, e à medida que ele falava eu via-o atarefado, no meio das luzes e da música, com a pista a rodar, a tentar agarrar os mais pequenitos, não fossem eles cair e magoar-se na sua pista.

Não lhe perguntei o nome, mas aqui agora, acho que se deveria chamar Eduardo. Não sei porquê palpita-me que deve ser esse o seu nome, Eduardo, o vigilante da pista dos carrinhos, das bicicletas, das motas e dos bichos. Uma pequena, empoeirada e simples pista que as crianças adoravam.

E disse-me o Eduardo que só lhe começava a tirar o pó lá para as seis, seis e meia da tarde, porque antes não valia a pena, porque vinham sempre algumas crianças que a subiam escadas acima e a deixavam suja de terra. E o Eduardo ajudou-me a pôr o meu Tomás no melhor brinquedo da pista. Era um cavalinho com rédeas que se puxavam e o cavalinho galopava, mas claro que era num galope a brincar que era preciso imaginar. E ele dizia para o Tomás e agarrava-o quase a deixá-lo cair: “Vá, puxa as rédeas Tomás”. E para mim dizia: “É que o cavalinho tem uma mola por debaixo dele e assim é só puxar as rédeas...”. E eu via-o a agarrar nos outros meninos de ano e meio, ou dois, ou três, e ensiná-los a andar no cavalinho. E ele era feliz, muito feliz.

E eu vi no Eduardo já homem, um dono de uma pista infantil que ia de festa em festa, e disse-lhe. E o Eduardo respondeu que o avô tinha uma pista dessas das festas, mas que era muito maior.
“Então porque não andas com o teu avô?”, perguntei-lhe eu com um ar de quem não percebia porque não andava ele com a pista do avô.
E o Eduardo dizia que o avô andava com a pista dele na França, porque senão, se ele andasse em Portugal, decerto que andaria com ele e que assim já poderia deixar a escola. Eu disse-lhe que talvez o melhor seria ele andar com o avô e andar na escola. “Podias fazer as duas coisas ao mesmo tempo, andavas na escola e com o teu avô na pista”. E o Eduardo não me respondeu nada, mas pareceu-me ler-lhe nos olhos que não lhe agradava muito a ideia, que não se deveria misturar a escola com a sua amada pista de carrinhos, motas, bicicletas e bichos. E eu fiquei a pensar, eu que sou professor, que de facto nunca vira na escola tanto brilho nos olhos de uma criança como aquela que tinha ali à minha frente, e arrependi-me de não o ter só incitado a ficar com a sua pista, a limpar-lhe o pó e a ajudar os mais pequenitos para que não caíssem dos cavalinhos...

Depois ficámos ainda mais uns instantes em silêncio. Dei-lhe um pacote de bolachas que trazia no saco das compras e fui embora com o Tomás. Trouxe uma forte sensação no peito que foi aquela que me deu força para relatar o meu encontro com o rapazinho da pista dos carrinhos. E essa forte sensação no peito que ainda agora trago comigo, é uma grande sensação de alegria pela felicidade que senti no Eduardo com a sua pista isolada no ermo do recinto das festas, mas é ao mesmo tempo uma vontade de chorar, por receio de um dia o sonho do Eduardo poder acabar.


. . . . . .


À noite, depois da festa ter acabado, calhou ainda ter passado pela pista. Agora já desmontada, peça por peça, colocadas por cima de uma carrinha de caixa aberta. Estava quase pronta para partir para outro lugar, para outra festa, onde iria animar mais meninos com os seus mil brinquedos. Por cima das peças desmontadas e cuidadosamente arrumadas, sentado, estava o Eduardo que se mantinha ainda, já noite dentro, vigilante com a sua pista que fazia a delícia dos outros meninos. E estava contente, e ria-se com um outro companheiro que entretanto se lhe tinha juntado, naquela missão do desmanchar da pista.

E eu imaginei-o no outro dia, deitado na cama antes de adormecer, a pensar em quantos meninos teriam naquela noite viajado na sua pista. Como gostaria de a ter acompanhado até Beja... E adivinhei-lhe uma quase lágrima no canto do olho, por não estar junto dela, a limpar-lhe o pó e a ajudar os outros meninos a não caírem de cima dos cavalinhos.

Nessa noite, e em muitas outras noites, sonhou com a sua pista, com luzes e músicas mais bonitas do que na realidade tinha. E em muitos outros dias contou mil histórias a outros meninos que, por sua vez, também ficavam a sonhar com a pista do Eduardo.

E foi assim que passados tantos dias como histórias da sua pista contou, chegou um outro dia em que de novo começou a Escola...
Foto de Raul Costa

7 - UM POMBAL NA VARANDA

Sem mais nem porquê dei com um pombo, vermelho, na varanda. Era um pombo-correio, estava anilhado e tinha pouca idade. Um borracho. Pareceu-me que tinha perdido o rumo. Digo isto com base nalguma experiência que ganhei no tratamento de pombos, porque cheguei a ser columbófilo, há uns bons anos atrás. Alguns borrachos quando saem do pombal e iniciam os primeiros voos, por vezes, acontece perderem-se.

A minha primeira reacção, quase automática, foi dar-lhe liberdade. Agarrei nele e soltei-o no ar, na esperança que se conseguisse orientar. Mas não, fez um voo picado e aterrou no terreno que fica defronte da varanda. Receei pela sua sorte.

Saí de casa, fui fazer já não sei o quê, mas fiquei com o pombo na cabeça. Quando regressei já era noite. Fui espreitar na varanda e lá estava ele de novo. Entufado, cabeça por dentro das penas, dormia. Pensei que, para além de perdido, poderia também estar adoentado, ou pelo menos entristecido pelo sentimento de abandono.

No dia seguinte, quando fui à varanda, ele já não estava. Pensei de imediato que tinha seguido a outras paragens. Mas logo reparei num pombo que se alimentava, a alguma distância, nesse dito terreno. Resolvi comprar ração, o alimento que se dá aos pombos-correios, e juntei-lhe uma vasilha com água. Comida e bebida para o caso dele continuar a fazer da minha casa o seu poiso.

Ele gostou do petisco e deu-se como inquilino.

Desde que o agarrei da primeira vez nunca mais ele permitiu que isso se repetisse. Não é que eu tivesse voltado a tentar, mas assim que me aproximava mais do que o devido ele raspava-se.

Passaram tempos e o borracho foi crescendo até que se fez um pombo adulto. Era frequente agora dar com ele a rolar. Sozinho, encostado à parede da varanda, rolava na esperança que alguma pomba o ouvisse. Dia após dia, ele lá ia cumprindo o seu ritual de procura de companhia. E não foi preciso muito tempo para que uma companheira aparecesse.

Uma pomba branca.

Ele ensinou-lhe o caminho da ração e da água. Ensinou-lhe a não me dar muita confiança. E, talvez até por isso, deixou de cá dormir. Agarrou nela e levou-a a dormir em sítio mais seguro. Mas todos os dias vinham os dois à procura do alimento e sempre o alimento lá estava. Vinham várias vezes ao dia e ficavam por algum tempo, poisados no parapeito da varanda, mirando o horizonte, até que se aborreciam e iam dar mais uma volta.

Eu andava contente com os meus amigos. Os pombos têm para mim um significado especial, e uma pomba branca ainda mais, e tudo isto me dava uma sensação de grande conforto.

Mas não era só. Aquela minha varanda estava completa. Para além dos pombos existem uns ninhos de andorinhas que já há anos regressam pela Primavera e também alguns pardais se habituaram a vir ao trigo que faz parte da ração dos pombos. Era decididamente uma varanda muito bem frequentada e era uma alegria preparar as minhas actividades de professor – preparar as aulas, ver trabalhos, etc. – com toda aquela azáfama na varanda.

Um belo dia, estava eu a trabalhar quando, de repente, em vez de dois pombos apareceram quatro. Os filhotes cresceram e os pais, naturalmente, quiseram mostrar aquele belo restaurante aos filhos. Eu, com certeza, também o faria. Os filhotes à semelhança da mãe também eram brancos, ou melhor, maioritariamente brancos pintalgados com algumas manchas mais escuras.

Eu gostei do que vi, mas um sobressalto se apoderou de mim: Depressa concluí que, passados uns tempos, teria a minha varanda transformada no Rossio e temi problemas com os meus vizinhos. Resolvi não fazer nada e arriscar. Eu adorava aquela companhia.

Tempos passaram e, tal como eu previ, em vez de quatro apareceram seis. Os filhos mais velhos cresceram e acasalaram e previa-se uma cada vez maior progressão aritmética. Curioso é que os filhotes saíam quase todos brancos.

Vinham todos à procura do sustento, embora muitas vezes o fizessem, alternadamente, entre os machos e as fêmeas mais velhas. É que quando tinham ovos ou filhotes pequenos tinham que se revezar. Nem ovos, nem filhotes a papa, poderiam ficar sozinhos. E engraçado, havia uma ordem para se comer: Primeiro os mais velhos, o pai ou a mãe (ou neste caso os avós, pois já se tinha chegado, pelo menos, à terceira geração), depois os machos mais velhos, mais fortes, e depois os outros. Mas não havia problema, a comida chegava para todos. Só aquele receio de chatices com os vizinhos me acompanhava.

Mas, repentinamente, a partir de certa altura, reparei que o pombo vermelho, o anilhado, aquele que tinha sido o meu primeiro visitante, deixou de aparecer. Apanharam-no, caçaram-no, não sei. Simplesmente desapareceu.

A sua companheira, a pomba branca, ainda veio durante algum tempo com o resto da família. Mas as ausências começaram rapidamente a aumentar. Vi o último, uma pombinha toda branquinha, resultado com certeza da última criação, num certo Domingo de Dezembro. Não faço ideia do que lhes terá acontecido. Espero que estejam bem.

8 - POR DENTRO (Triângulos em cima de Quadrados)

88
A inteligência, o pensamento, o raciocínio, a reflexão, a consciência, a alma, a parte de cima, o cimo do monte. A cabeça (toda ela), o sono, o sonho, o bem e o mal, por dentro e por fora, o princípio e o fim, o céu, o Universo, o Paraíso, o silêncio, a respiração do universo, a Música, a Índia, os Himalaias, o Sol, o Ter, o D, o Velho.

888
O coração, o amor, o bem-querer, a amizade, a oração, a calma, o estar à vontade, o pisar do caminho devagarinho, o olhar as pedras do chão, o pé descalço, o princípio, a ponta da seta, o perdão, o seu irmão (e a traição), a evangelização, Portugal, Bethlem, o Palácio de Belém, a Terra, o peixe, o aprender e o ensinar, o acordar, o existir, o C, o Novo.

44
O fogo, o fumo, a água, as unhas, o ramo da oliveira, o azeite, a verdade, o meio, a pomba (branca), a paz, as asas, o cordão-de-prata, o ar, o éter, o mar, a ligação, a ponte, o transporte, a transcendência, o vermelho, o verde e o amarelo, a vigília, o espírito, o voo, a corda, S. Francisco de Assis, a poesia, a pobreza, o ser, a corda, o E, o Entretanto.

22/8
O branco, a luz, o brilho, a pureza, a virgindade, a inocência, as crianças, Valinhos, a Rainha Santa, a mulher, a beleza, a Musa Única, a mãe, as mãos, a caridade, o dizer sim, a salvadora, toda a compreensão, as lágrimas, a ascenção, a lua, o M, Ela.